segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011



Então me vens e me chega e me invades e me tomas e me pedes e me perdes e te derramas sobre mim com teus olhos sempre fugitivos e abres a boca para libertar novas histórias e outra vez me completo assim, sem urgências, e me concentro inteiro nas coisas que me contas, e assim calado, e assim submisso, te mastigo dentro de mim enquanto me apunhalas com lenta delicadeza, deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida, que nada devo esperar além dessa máscara colorida, que me queres assim porque assim que és?
Caio Fernando Abreu
The Kiss - Gustav Klimt

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

No casarão (... um rangido do tempo)


A escada de madeira exalava um perfume de amêndoa doce e os degraus rangiam. Subíamos e descíamos acelerados.
Estou subindo agora e entrando no corredor dos quartos, uma galeria com paredes brancas e portas escuras. Aqui não podemos correr, não podemos falar alto, guardamos o riso, o choro e o grito. Entro no quarto que tem cheiro de água na moringa. É fresco e úmido como a própria moringa, é simples como o cobertor cinza e áspero que se torna macio quando estendido sobre o lençol branco de algodão, silencioso como o criado mudo velando a cama junto à parede.
Abro a janela e tudo é colorido. Os canteiros de flores e as costelas de adão estão lá, como sempre estiveram, assim como o chão de terra batida e o horizonte com o trem contornando a curva da montanha. Escuto os risos, os choros e os gritos, e todos correm para a estação de chegada e partida.
Deixo o quarto e de novo no corredor volto os olhos pro final da galeria, de lá vem o eco dos azulejos, dos últimos pingos do chuveiro.
Desço as escadas, desacelerada, e range o tempo.
No vestíbulo me encontro com ele, estático e eterno, me deparo com ele guardando tudo por dentro, o meu primeiro abrigo na sua moldura oval: o espelho de corpo inteiro.
Por ele vejo as mães passando com os cabelos presos, tornozelos à mostra, e os filhos chamando por elas. Os filhos sempre chamam por elas quando as vêem passar.
Vejo os balões de festa que estouram nas mãos dos meninos e das meninas que deslizam na água da fruta madura com o gosto do tamarindo salivando a vida. Escuto a ciranda das vozes entardecidas.
Meus olhos salivam a imagem que vejo, meu corpo inteiro não cabe mais nele, no meu primeiro espelho por onde um dia atravessei e perdi o caminho de volta. Mas num chamado do tempo me encontro em meio aos que correm atendendo ao apito do trem com sua fumaça desenhando rolos de música e vento.

Maria Cristina Nunes

Texto extraído do Blog: cristinanunes.blogspot.com

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011


Na estrada do tapejara:
O tempo que nos separa,
É o que mais nos aproxima,
Quem vira mundo não para,
Nem tampouco desanima...

E nesse andejar em frente,
Sem procurar recompensa,
Fui vendo - na diferença,
Entre passado e presente,

Que a lembrança de um ausente,
Tem mais força que a presença!
 
Trecho de Querência, tempo e ausência, de Jayme Caetano Braun

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Encontrei minhas origens



Encontrei minhas origens
Em velhos arquivos
Livros
Encontrei
Em malditos objetos
Troncos e grilhetas
Encontrei minhas origens
No leste
No mar em imundos tumbeiros
Encontrei
Em doces palavras
Cantos
Em furiosos tambores
Ritos
Encontrei minhas origens
Na cor de minha pele
Nos lanhos de minha alma
Em mim
Em minha gente escura
Em meus heróis altivos
Encontrei
Encontrei-as, enfim
Me encontrei.

Oliveira Silveira

Do Blog:
http://afroetec.blogspot.com/2009/11/encontrei-minhas-origens-oliveira.html

E até quem me vê lendo o jornal
Na fila do pão, sabe que eu te encontrei...

Rodrigo Amarante
Fotografia de Pierre Verger