Quero
contar aos leitores duas histórias do protagonismo negro ocorridas nesta cidade
em meados do século 19. Digo protagonismo
porque quero evidenciar que a população negra que aqui viveu traçava planos para
deixar o cativeiro. Por muito tempo achou-se que a carta de liberdade provava a
bondade dos senhores. No entanto, em muitos casos os escravizados lutavam para
obterem sua alforria. A luta contra o racismo e a falta de oportunidades não
vêm de hoje. Vamos ver o que estas histórias podem nos contar sobre isso.
As duas histórias que relatarei a
partir de agora foram encontradas em documentos depositados no Arquivo Público
do Estado do Rio Grande do Sul. Os dois protagonistas desta história chamam-se
Faustina e Anacleto. Faustina, filha da escravizada Joaquina, nasceu em 1843
(Melo, Uruguai) apenas um ano após a Abolição da escravatura naquele país.
Anacleto, filho da escravizada Marcela, nasceu em Encruzilhada em 1851. Mas o
que estas duas histórias tem em comum? Tanto Faustina como Anacleto passaram
pelo Uruguai em tempos que já não havia mais escravidão e foram vendidos como
cativos aqui em Jaguarão, provavelmente na praça do desembarque.
Faustina nasceu no Uruguai porque
sua mãe, a africana Joaquina, fugiu de Jaguarão para Melo em busca de sua liberdade.
Joaquina até conseguiria uma alforria, já que muitas outras africanas de sua
idade juntavam dinheiro para oferecerem à sua senhora. Mas por algum motivo que
não sabemos, Joaquina rumou para Melo e em pouco tempo casou-se com também
africano Joaquim, nascendo lá sua filha Faustina. Como a africana fugiu durante
a Guerra dos Farrapos, ao findar este conflito um capitão do mato foi a sua
procura. Ao invés de capturar Joaquina, o capitão Noronha apreendeu Faustina,
que possuía apenas 10 anos. Faustina foi levada para Jaguarão e de lá foi
vendida para Pelotas. Faustina nasceu em um país livre, mas por ser filha de
africanos foi escravizada e assim permaneceu até 1854, quando moradores de
Pelotas avisaram o cônsul uruguaio de que ali uma vivia uma “oriental”
escravizada ilegalmente. O processo aberto pelo juiz de Pelota durou
aproximadamente dois anos. Por fim, com a insistência do cônsul e dos pais de
Faustina, a mesma foi libertada e extraditada para seu país de nascimento.
Em 1859, quando Anacleto possuía oito
anos, seu senhor Ântônio o levou de sua fazenda em Encruzilhada para uma estância
em Tupampaé, Uruguai. Anacleto não foi o único enviado. Muitos outros cativos
brasileiros trabalhavam em estâncias uruguaias num tempo que a escravidão havia
sido abolida daquele país. Ismael, filho de Antônio era o responsável pela estância.
Por seu descuido, Anacleto foi sequestrado por dois indivíduos a cavalo.
Anacleto foi levado para Jaguarão e de lá foi vendido para Rio Grande. Neste
período, o preço dos escravizados era muito alto, devido o fim do tráfico de
africanos em 1850. Um peão que trabalhava para Antônio, primeiro senhor de
Anacleto, o reconheceu em Rio Grande e avisou seu patrão. A partir daí surgiu
um processo criminal para investigar o caso de roubo do cativo. Anacleto,
apesar da possibilidade de ser liberto por viver no Uruguai depois da abolição,
não conseguiu sua liberdade, pois por ter nascido no Brasil o consulado uruguaio
não pode defendê-lo.
As desventuras de Faustina e Anacleto
mostram o quão era incerto morar em regiões de fronteira. Poderiam ser
escravizados de forma ilegal, ou obterem na Justiça a liberdade por pisarem em solo
uruguaio após 1842. Faustina obteve sua liberdade, pois o conceito de cidadã
uruguaia foi acionado por seus advogados. Contudo, o conceito de solo livre,
que provava que Anacleto pisou no Uruguai não teve a mesma força. Espero que
estas histórias, que provam o protagonismo negro no passado, contribuam para
que a população negra que vive aqui em Jaguarão atualmente se inspire a lutar
pelo reconhecimento de sua história e pela conquista de seus direitos.
(UNIPAMPA/UFRGS)
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