sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Duas histórias do protagonismo negro em Jaguarão



          Quero contar aos leitores duas histórias do protagonismo negro ocorridas nesta cidade em meados do século 19. Digo protagonismo porque quero evidenciar que a população negra que aqui viveu traçava planos para deixar o cativeiro. Por muito tempo achou-se que a carta de liberdade provava a bondade dos senhores. No entanto, em muitos casos os escravizados lutavam para obterem sua alforria. A luta contra o racismo e a falta de oportunidades não vêm de hoje. Vamos ver o que estas histórias podem nos contar sobre isso.

            As duas histórias que relatarei a partir de agora foram encontradas em documentos depositados no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Os dois protagonistas desta história chamam-se Faustina e Anacleto. Faustina, filha da escravizada Joaquina, nasceu em 1843 (Melo, Uruguai) apenas um ano após a Abolição da escravatura naquele país. Anacleto, filho da escravizada Marcela, nasceu em Encruzilhada em 1851. Mas o que estas duas histórias tem em comum? Tanto Faustina como Anacleto passaram pelo Uruguai em tempos que já não havia mais escravidão e foram vendidos como cativos aqui em Jaguarão, provavelmente na praça do desembarque.

            Faustina nasceu no Uruguai porque sua mãe, a africana Joaquina, fugiu de Jaguarão para Melo em busca de sua liberdade. Joaquina até conseguiria uma alforria, já que muitas outras africanas de sua idade juntavam dinheiro para oferecerem à sua senhora. Mas por algum motivo que não sabemos, Joaquina rumou para Melo e em pouco tempo casou-se com também africano Joaquim, nascendo lá sua filha Faustina. Como a africana fugiu durante a Guerra dos Farrapos, ao findar este conflito um capitão do mato foi a sua procura. Ao invés de capturar Joaquina, o capitão Noronha apreendeu Faustina, que possuía apenas 10 anos. Faustina foi levada para Jaguarão e de lá foi vendida para Pelotas. Faustina nasceu em um país livre, mas por ser filha de africanos foi escravizada e assim permaneceu até 1854, quando moradores de Pelotas avisaram o cônsul uruguaio de que ali uma vivia uma “oriental” escravizada ilegalmente. O processo aberto pelo juiz de Pelota durou aproximadamente dois anos. Por fim, com a insistência do cônsul e dos pais de Faustina, a mesma foi libertada e extraditada para seu país de nascimento.

            Em 1859, quando Anacleto possuía oito anos, seu senhor Ântônio o levou de sua fazenda em Encruzilhada para uma estância em Tupampaé, Uruguai. Anacleto não foi o único enviado. Muitos outros cativos brasileiros trabalhavam em estâncias uruguaias num tempo que a escravidão havia sido abolida daquele país. Ismael, filho de Antônio era o responsável pela estância. Por seu descuido, Anacleto foi sequestrado por dois indivíduos a cavalo. Anacleto foi levado para Jaguarão e de lá foi vendido para Rio Grande. Neste período, o preço dos escravizados era muito alto, devido o fim do tráfico de africanos em 1850. Um peão que trabalhava para Antônio, primeiro senhor de Anacleto, o reconheceu em Rio Grande e avisou seu patrão. A partir daí surgiu um processo criminal para investigar o caso de roubo do cativo. Anacleto, apesar da possibilidade de ser liberto por viver no Uruguai depois da abolição, não conseguiu sua liberdade, pois por ter nascido no Brasil o consulado uruguaio não pode defendê-lo.

            As desventuras de Faustina e Anacleto mostram o quão era incerto morar em regiões de fronteira. Poderiam ser escravizados de forma ilegal, ou obterem na Justiça a liberdade por pisarem em solo uruguaio após 1842. Faustina obteve sua liberdade, pois o conceito de cidadã uruguaia foi acionado por seus advogados. Contudo, o conceito de solo livre, que provava que Anacleto pisou no Uruguai não teve a mesma força. Espero que estas histórias, que provam o protagonismo negro no passado, contribuam para que a população negra que vive aqui em Jaguarão atualmente se inspire a lutar pelo reconhecimento de sua história e pela conquista de seus direitos.
 
 Prof. Jônatas Caratti
(UNIPAMPA/UFRGS)


 


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